sábado, 21 de setembro de 2019

GIGANTE PELA PRÓPRIA NATUREZA?! O CRESCIMENTO DO ATHLÉTICO-PR E SUA FILIAÇÃO AO MOVIMENTO BOLSONARISTA


“É a história sendo escrita por um time que sai da galeria dos grandes para entrar na galeria dos gigantes do futebol brasileiro” (Luís Roberto, 18/09/19).

Essa fala supracitada foi dita pelo conhecido locutor da Rede Globo após o gol de Rony, que sacramentava o Club Athlético Paranaense como campeão da Copa do Brasil de 2019 depois de uma final épica na qual o time paranaense engoliu o Internacional de Porto Alegre, vencendo as duas partidas da decisão. A vitória também confirmou a maior fase da história dessa instituição. O time que estava na série B em 2012 (há 7 anos atrás) acumulou em duas temporadas (18/19) os seguintes títulos:

·        Intercontinental (J.League YBC Levain Cup/CONMEBOL Sudamericana conquistada no Japão em 2019);
·         Continental (Copa Sul-americana 2018);
·         Nacional (Copa do Brasil 2019);
·         Estaduais (atual Bicampeão do campeonato paranaense – 18/19).

Além disso, o clube parece que virou exemplo de gestão no futebol brasileiro com estádio moderno (sendo, de fato, o primeiro campo brasileiro a adotar a política do “naming rights” a partir da parceria com a Kyocera), padrão FIFA, com grama sintética, etc. (além de ter sido apontada como uma das poucas obras da Copa a serem feitas de forma legal, ou seja, não sendo confirmada irregularidade alguma). 

O clube também se utiliza de uma gestão que virou exemplo nacional de organização e de ser “à frente do tempo” para os padrões brasileiros, tendo votado a favor do número definitivo de inscrições de jogadores por temporada do campeonato brasileiro (regra que vem sendo empregada por muitos países de futebol com influência internacional). Além disso, o clube se mostrou como um dos primeiros a tentar bater de frente com o monopólio do grupo Globo na transmissão do futebol brasileiro da Série A, assinando com agora concorrente Esporte Interativo.

O CAP (como é popularmente chamado) também virou exemplo em inovação, tendo mudado o nome do time (de Atlético para Athlético), o escudo do clube, as cores dos segundo e terceiro padrões das equipes, aumentado categoricamente o número de sócios na atualidade, salários em dia, e tendo até pessoas influentes dentro do clube informando a possibilidade de alteração das cores históricas de uma instituição que em 2024 completará 100 anos de existência.

O clube passou a ser referência também em retorno de investimentos em jovens promessas. Em pouco tempo, o clube tornou populares nomes desconhecidos como Santos, Bruno Guimarães, Renan Lodi (todos esses recém convocados pela seleção brasileira), Léo Pereira, Marcelo Cirino, etc., tendo a formação de seu plantel profissional uma porcentagem categórica de jogadores formados pelo próprio clube. Atrelado a isso, a equipe conta também com jogadores consagrados com passagens em grandes clubes e pelas seleções como o argentino Lucho González, e o recém-chegado Adriano, que teve passagem pelo Barcelona da Espanha.

Por fim, o time aumentou sua receita de forma considerável nos últimos anos, conseguindo grandes patrocinadores e aumentando ainda mais a distância para os seus rivais no Estado e na capital. A distância realmente tornou-se tão grande a ponto de parecer estar a anos-luz dos seus concorrentes de tal modo que se tornou bi campeão em seu Estado usando apenas o time de aspirantes, ou seja, sem precisar usar sua equipe A para ser campeão.

Todavia, poderia citar aqui diversos exemplos de boas gestões, que passaram a capitalizar mais recursos, menos dívidas, aumento de número de sócios, entre outros fatores, e mesmo assim serem clubes que, no máximo, atingem o patamar mediano no cenário do futebol brasileiro. Desse modo, a pergunta necessária a ser feita é: de onde vem esse crescimento assombroso do Athlético Paranaense nos últimos anos? Ou, dito de outra forma, quais os caminhos tornaram possíveis para que o CAP “rompesse a barreira, entrando na lista dos gigantes” (Luís Roberto, 18/09/19). 

Nesse ínterim, o texto aqui apresenta dois momentos desse clube, a fim de comprovar a hipótese de que o CAHP é “filho do bolsonarismo”. Talvez você esteja pensando: “mas, o que uma coisa tem a ver com outra?!” Parafraseando Shakespeare, “há mais coisas entre duas barras do que sonha nossa vã filosofia!”.

Como mencionado acima, o texto se propõe a revelar dois momentos da história desse clube. O primeiro deles é a passagem do Athlético de um time sem muita expressão para um grande clube do futebol brasileiro. Torna-se importante colocar que na década de 1940 o CAP ganhou 4 dos 10 títulos da década no Estado. Todavia, após isso, o clube passou por uma seca categórica de títulos, conquistando apenas 2 títulos em 31 anos, passando, assim, por um dos períodos mais nebulosos de sua história.

Ai entra em cena uma figura importante para a história dessa instituição. Seu nome: Mario Celso Petraglia. Gaúcho de nascimento, tornou-se apaixonado pelo clube desde cedo. Mario é influência marcante no rubro-negro paranaense há décadas. Em 1995, assumiu a gestão do clube e em menos de 10 anos encabeçou as obras da Arena da Baixada e o CT do Caju. Interessante é que muitas das grandes obras e conquistas do clube foram sob sua direção. Bem provável que no futuro o clube dedique nomes de galerias ou outros monumentos em homenagem ao seu grande presidente.

É importante comentar também que Petraglia tornou-se exemplo de gestor no país, sobretudo por uma mistura de grande visionário com figura ilibada. Mas será mesmo?! Pouca gente sabe ou lembra, mas em maio de 1997, o Jornal Nacional, da TV Globo, divulgou gravações de telefonemas que desvendariam um esquema de corrupção dentro da CBF supostamente envolvendo a venda de resultados de jogos e financiamento de campanhas políticas. O pivô do escândalo foi o então presidente da Comissão Nacional de Arbitragem, Ivens Mendes. As gravações mostravam Mendes pedindo R$ 25 mil ao então presidente do Atlético-PR, Mario Celso Petraglia, sugerindo também que o seu clube seria beneficiado em uma partida contra o Vasco pela Copa do Brasil, vencida (coincidentemente) pelo Athlético (até então Atlético) por 3x1, parecendo provar que o cartola Athléticano sabia bem os caminhos a serem tomados para alcançar bons lugares no futebol brasileiro.
Antes de seguirmos falando de Mario Celso Petraglia, é importante colocar que em 10 anos o clube que estava na série B ganhou a segunda divisão de 1995 e em 2005 disputava uma final de Libertadores, passando por um torneio seletivo da Taça Libertadores em 1999, um quarto lugar da copa Sul-Minas em 2000, um título brasileiro em 2001, um vice campeonato da copa Sul-Minas em 2002, a Copa Paraná em 1999 e 2003, um vice campeonato brasileiro em 2004 e 5 títulos de campeonato estaduais (19982000200120022005). Por fim, o time também ficou em terceiro lugar da Copa Sul-americana em 2006.
De fato, o Athlético-PR tornou-se grande. Entretanto, o fato do clube já ter disputado 6 vezes a Série B do campeonato brasileiro indica que a agremiação, ainda que grande, vive de lampejos históricos e de um certo movimento pendular. Algo a mais deveria ser feito a fim de que se tornasse um clube “gigante” do futebol brasileiro. E como foi feito isso?! Como um clube que em 2012 estava numa série B do campeonato brasileiro de repente renasce como uma Fênix e chega ao patamar que alçou nos últimos anos? Nesse sentido, a figura de Petraglia mais uma vez entra em cena e a resposta para essas perguntas deve passar por um entendimento político do cenário atual brasileiro.

De forma objetiva, o atual presidente do Clube Athlético Paranaense aliou-se ao bolsonarismo para conseguir fazer com o que o clube alçasse voos mais altos. Cabe lembrar que no ano passado o clube foi multado em 70 mil reais pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) por fazer apologia ao então candidato ao cargo de presidente da república Jair Messias Bolsonaro, entrando em campo com camisas amarelas que continham a seguinte frase: "vamos todos juntos por amor ao Brasil" no duelo com o América-MG, um dia antes das eleições, desrespeitando torcedores e funcionários que não concordavam com essa apologia.


Além disso, o clube rubro-negro adotou como um dos seus padrões a cor amarela, a fim de auxiliá-lo numa promoção indireta do marketing bolsonarista na época.
Outra fonte de alinhamento do CAP ao bolsonarismo se dá pelas parcerias de patrocínios do clube nos últimos anos. O clube há dois anos vem sendo patrocinado pela empresa HAVAN, que além de estampar seu nome nas mangas das camisas do time ainda disponibiliza materiais como, por exemplo, na final da Copa do Brasil, no jogo de ida na Arena da Baixada, a empresa disponibilizou bastões que auxiliam o torcedor a bater palma e a fazer festa (tornando-se um grande componente estético no estádio), ao mesmo tempo em que divulgam a empresa.
Engraçado é que a HAVAN é chefiada por uma controversa pessoa chamada Luciano Hang. Hang é uma figura hipócrita que se veste de patriotismo, mas tem como carro-chefe da sua empresa a estátua da liberdade norte-americana. Hang foi um patrocinador máster da campanha do atual presidente da república. Dentre algumas ações, o mesmo aparece em vídeos coagindo funcionários da empresa a votarem em seu candidato. A tática é simples: um simples assalariado tem medo de perder o emprego. Diante de uma situação dessa, você acha que um funcionário bateria de frente com essa compreensão? Dificilmente! Ainda por cima, o trabalhador passa horas em uma rotina estressante, sobrando para ele pouco espaço de tempo para a reflexão acerca dos contextos políticos. Diante do dono da empresa (e de um discurso de alguém “que está por cima”), entre outros fatores, o funcionário tende a ser influenciado por essa tática.
Achando pouco, o próprio Luciano Hang encabeçou o movimento de compartilhamento de “fake news” através de notícias absurdamente mentirosas, mas precisas no impacto de produzir um sentimento de “anti-petismo”, ou, na verdade, um sentimento anti qualquer coisa que pudesse comprometer a eleição de um candidato que consegue comprometer-se por si só, bastando apenas abrir a boca.
A razão é simples e aqui permita-me fazer uma rápida digressão usando a análise de Nelson Tomazi e Marco Antônio Rossi (2018) . Segundo os autores em questão, em 2014, foram entregues 26,5 milhões de declarações de Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF). Os maiores milionários brasileiros, grupo de apenas 71.440 contribuintes (0,26%), os que estão no topo da pirâmide, declararam faixa de renda superior a 160 salários mínimos mensais. Juntos, eles detêm 29% do patrimônio e 22% da renda nacionais. É como se cada um tivesse salário mensal de R$ 341 mil e patrimônio de R$ 17,6 milhões. Apesar de tanta riqueza, o imposto de renda pago por esse grupo representou 5,5% da arrecadação total com IRPF. Para ficar ainda mais claro, apesar de terem recebido R$ 196 bilhões como lucros e dividendos das empresas, parcela isenta de pagamento de impostos, repassaram aos cofres públicos R$ 6,3 bilhões, apenas 3,2% do que arrecadaram. A justificativa para essa isenção é evitar que o lucro, já tributado na empresa, seja novamente taxado quando se converte em renda pessoal, com a distribuição de dividendos.
Além do peculiar regime de pagamento de impostos, há ainda casos de sonegação fiscal, ou seja, situações em que o contribuinte burla as regras do Fisco e deixa de pagar os tributos devidos. Conforme dados da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, a dívida ativa junto à União, que é o valor equivalente ao montante de impostos devido ao país, é de um trilhão e 300 bilhões de reais (R$ 1.300.000.000.000,00). Esse valor equivale ao que o governo está deixando de arrecadar. Entre os devedores destacam-se 12.547 empresas que atuam nos mais influentes segmentos da economia: indústria, comércio, finanças, agronegócio, construção, entre outros. Elas representam menos de 1% das empresas do país, mas devem atualmente em torno de R$ 700 bilhões em tributos, cerca de 60% do total da dívida. Pelas razões expostas, a cobrança de impostos no Brasil configura-se como mais uma forma de enriquecimento daqueles que já são ricos, o que constitui uma fonte de manutenção e ampliação das desigualdades sociais no tocante à renda.
E onde entra o “velho da HAVAN” nessa história?! Apoiador fanático do presidente, o indivíduo em questão não parece apoiá-lo por besteira. Além de fazer parte desse seleto grupo de pessoas que ganham muito e contribuem proporcionalmente pouco, e apoiando-se na falácia bolsonarista de que “é difícil ser empresário no país”, Hang comprou há pouco um jato Bombardier Global 6000, cujo valor foi 250 milhões de reais. A razão é aparentemente simples: Hang apoiou um candidato que vem promovendo (quase como pauta única, até então, de governo) uma reforma na previdência que ao invés de bater de frente a quem realmente deve e precisa pagar à União, ignora R$ 426 bilhões devidos por empresas ao INSS e coloca, em pontos categóricos do texto apresentado, a bagatela nas costas do pobre brasileiro. Nisso tudo, Hang, que tem uma dívida pública estipulada em 165 milhões pôde gozar de um financiamento dessa dívida em “pesados” 115 anos de parcelas.

Ademais, voltando ao assunto principal, além da HAVAN, o Furacão (como é conhecido o clube paranaense) conta também em sua camisa com os patrocínios da Copacol e Digi+, e do banco Renner, de propriedade sabe de quem (como costuma narrar o próprio Luís Roberto, já mencionado nesse texto)?! Do bispo da Igreja Universal, Edir Macedo. Sim! O próprio bispo conhecido “do crente ao ateu” (como expressa a canção Gospel) por extorquir dinheiro mediante a fé alheia, e que montou um império a partir dessa tática crápula, tendo o próprio aparecido em diversos vídeos ensinando como retirar essa grana de pobres fieis em busca de solução para a vida.

Ainda falando da igreja Universal, que veio a público, em apologia (dessa feita por referenciais espirituais) ao presidente da república para falar, como um oráculo, que os demônios eram da esquerda e que os “mocinhos” eram “do outro lado da força”. Agora, sabe quem se tornou patrocinadora máster da Record, que tem como dono o próprio Edir Macedo? A HAVAN! Hang decidiu desembolsar uma quantia significativa em empresas de telecomunicação alternativas ao grupo Globo, e que comprasse a ideia de defender Jair Bolsonaro. Dentre essas empresas, o SBT e a respectiva Record. Perceba! As coisas parecem se fechar!

Nesse sentido, Athlético Paranaense virou “garoto propaganda” de um projeto político mais amplo, que tem como égide dois pontos que se encaixam perfeitamente numa leitura rasa sobre o time. O primeiro é a questão de ser exemplo, nesse caso para além dele, mas de um contexto mais amplo. A cidade de Curitiba passou a ser exemplo de organização, de transporte público, etc. Além disso, virou símbolo da luta contra corrupção, sendo a cidade em que está preso o ex-presidente Luiz Inácio “Lula” da Silva. Também é o lugar onde atuou Sérgio Fernando Moro, que embora tenha nascido em Maringá-PR, foi juiz federal da 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba, sendo este também um símbolo contra corrupção (mesmo sendo um símbolo bem frágil, visto que até a própria revista Veja parece ter voltado atrás de muitos dos elogios dados ao mesmo).

É necessário falar também que o Estado do Paraná teve uma diferença considerável entre candidatos no segundo turno das eleições para presidente no ano passado. Bolsonaro venceu em 307 dos 399 municípios do Estado, obtendo mais de 4 milhões de votos e uma porcentagem de 68,43% de votos válidos; porcentagem que aumenta quando se trata apenas da capital paranaense: 76,54%.

Fora ser exemplo, do ponto de vista amplo, o CAP tornou-se também referência dentro do futebol em específico. O clube passou a ser exemplo de boa gestão, mas, ao que parece, essa boa gestão é mais uma mentira que se acredita de pessoas supostamente ilibadas. E aqui voltamos a falar de Mario Petraglia, que se apresenta como maior defensor da moralização do futebol brasileiro, mas que tinha duas empresas para compra e venda de jogadores em paraíso fiscal. Sim! Mário Celso Petraglia abriu no Panamá a “Soccer Development” e ainda a “The Soccer Consulting”, de acordo com os registros obtidos na Junta Comercial daquele país. 

Nada de anormal ao relacionarmos cartolas do futebol brasileiro com a política. Basta lembrar de Luciano Bivar, deputado federal reeleito no Estado de Pernambuco (um dos mais votados) e que já foi presidente do Sport Club do Recife. Bivar sempre foi uma figura muito suspeita e corrupta, que admitiu vários casos de corrupção, como, por exemplo, o fato de ter pago dinheiro ilicitamente para que a CBF convocasse o volante Leomar para a seleção brasileira, em 2001, dentre tantos casos que fazem qualquer rubro-negro bolsonarista doente estranhá-lo. Bolsonarista?! Como assim?! Sim! Cabe lembrar que Luciano Bivar não é só associado, mas também presidente do PSL, partido do atual presidente da república.

Assim, o Athlético Paranaense é um clube que vem se beneficiando desse conchavo político para galgar um outro patamar no cenário brasileiro, sobretudo através de sua atual gestão que tenta passar uma ideia de ser ilibada e compromissada com a moral (típica égide do Governo atual, bem como de seus patrocinadores).

Mas é bem verdade, isso vem trazendo bons frutos ao CAP, obviamente. Nessa hipocrisia toda, o Athlético pode lucrar  mais de 100 milhões de reais no corrente ano:

·         Libertadores: R$ 16,03 milhões;
·         Recopa Sul-Americana: R$ 1,38 milhão;
·         Levain Cup (Copa Suruga): R$ 3,56 milhões;
·         Copa do Brasil: R$ 64,35 milhões;
·       Brasileiro: R$ 15,5 milhões (se acabar na posição atual, podendo até ganhar mais se melhorar no campeonato).

Por fim, o Instituto DataFolha lançou uma pesquisa com o intuito de saber “o time de preferência dos brasileiros”. Dividindo por região, a porcentagem assim ficou:


Perceba, na pesquisa não aparece nenhum time sequer do Estado do Paraná. Todavia, a previsão é que isso mude, apresentando outros clubes, em especial um time que vem levantando a bandeira do “estou fazendo história”, quando, na realidade “a história que está o fazendo”.


quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Torcedor organizado: tudo bandido!

No texto da semana passada tentamos problematizar um pouco sobre esse "cidadão de bem", que ao entrar em campo recebe o nome de “Torcedor pai de família”, sendo este um título autoatribuído de alguém que se julga superior aos outros, exemplo de vida íntegra e de torcedor padrão (embora a prática aponte um distanciamento dessa autoatribuição), todavia sem perceber que dentro das configurações sociais aplicadas ao campo de futebol alguns indivíduos têm facilidade maior de apreender o processo de mimesis (conceito falado no texto passado)[https://barraabara.blogspot.com/2019/09/o-cidadao-de-bem-e-sua-nomenclatura.html], e essa aplicabilidade está para além do futebol em si, mas de um contexto social mais amplo, dentro de uma distância (ou proximidade) social aos capitais econômicos, culturais, sociais, etc. (e mesmo sendo este "torcedor pai de família" também suscetível a brigas e outros problemas como qualquer outro torcedor, como de fato acontece).

O texto de hoje irá tratar da outra ponta desse espectro, o negativo, o torcedor organizado. Se de um lado temos aqueles que são figuras (auto)sacralizadas, do outro temos também as figuras “profanas” do espetáculo, aqueles “que não são torcedores de verdade”, que “vão pra campo pra fazer arruaça”, etc. Esses são os torcedores organizados.

Obviamente, o título deste texto é uma ironia em forma de provocação. O trabalho nessas poucas linhas que irão seguir é tentar trazer uma outra perspectiva acerca dessa generalização de que "todo torcedor organizado é bandido". Para início, torna-se importante citar uma pesquisa realizada por Maurício Murad lançada em seu livro “Para entender a violência no futebol” publicado em 2012 pela editora Benvirá.

Murad, através de uma exaustiva pesquisa, detectou que a violência do futebol é praticada por cerca 5 a 7% dos torcedores organizados. ISSO MESMO! Entre 5 a 7%. Engraçado é que vivemos um tempo em que as pesquisas científicas são desacreditadas nesse país em detrimento a um pseudointelectualismo que vem tomando conta daqueles, como entoa a velha canção de Roberto Carlos, “pensamentos poluídos pela falta de amor". Entretanto, você acreditando ou não, a pesquisa do Murad é séria! Só pra tornar mais elucidativa a questão, vale exemplificar a partir de filtros:
  • ·Imagine aqueles que gostam de futebol;
  • ·Destes, os que torcem por um time (já que as duas coisas não necessariamente são a mesma coisa);
  • ·Destes, os que vão a campo;
  • ·Destes, os que vão regularmente ao estádio;
  • ·Destes, apenas os torcedores organizados (estes, segundo Murad, são mais de 2.000.000 espalhados no país);
  • ·E destes apenas 5 ou 7% cometem delitos.
Maurício Murad ainda vai além. Para ele, essa porcentagem não reflete de fato, os torcedores organizados, mas o que ele chamou de “infiltrados”. Os infiltrados são, na realidade, indivíduos ligados a diversos rituais de criminalidades, em especial nos seus contextos de bairros, e que encontram nas torcidas organizadas um facilitador para propagação de crimes, como tráfico de drogas, por exemplo, diante do anonimato de estar em um grande grupo, em um grande espaço, e diante da opinião pública que generaliza a figura do torcedor organizado, colocando-o, em unanimidade, como bandido. Assim, os crimes ocasionados por esses infiltrados são sempre taxados em sua superficialidade como crimes de torcida organizada, perdendo questões latentes que vão além da T.O. Nesse ínterim, a mídia (mais uma vez falando da mídia) tem sua parcela de culpa na formação de uma opinião superficial dos fatos, problema que Bourdieu chamou de “mostra do vazio”:

Antes de seguir, é necessário apontar algumas críticas às noções empregadas por Murad, a fim de tornar justa a reflexão aqui, tomando pelo pressuposto que um dia ouvi de minha orientadora: “nem toda pesquisa está 100% certa, nem toda pesquisa está 100% errada”. É partir disso que aplico algumas discordâncias ao pensamento do autor em questão.

Em primeiro lugar, como foi falado no texto passado, é um equívoco atribuir a violência do futebol apenas ao torcedor organizado. Todos estão passíveis a cometer crimes em campo (como assim o fazem). Basta que a compreensão de que o futebol é um embate lúdico movido por regras (e que aponta para a sublimação e a liberação da cartase) se perca para que o confronto não autorizado apareça. 

Ademais, outra limitação é resumir os crimes na torcida organizada a partir do confronto, esquecendo que a homofobia, por exemplo, é um crime muito mais recorrente visto nos estádios de futebol. Afirmo com veemência: nem todo jogo tem caso de violência física, mas todo jogo tem caso de homofobia. Colocar em escanteio isso é (embora entenda sua proposta e foco) não atingir a violência do futebol de forma mais profunda, julgo eu.

Além disso, o próprio autor reconhece como equivocadas certas medidas na tentativa de acabar com a violência no futebol. Embora seja tema para outro texto, reconheço aqui também como equivocada determinadas medidas, como, por exemplo, a proibição de materiais das torcidas organizadas. Como Murad mesmo afirmou, isso não ajuda em nada porque aumenta o anonimato desses delinquentes, ficando mais difícil identificar os que cometem delito em campo. 

Todavia, o autor, com isso, dá “um tiro no pé”, porque da mesma forma que não dá para identificá-los como torcedor organizado também não dá para identificá-los como infiltrados. Nesse sentido, cabe a pergunta: todo delinquente adentrado em T.O é infiltrado? Julgo que não. Nesse aspecto, Murad parece escantear outras questões sociais que parecem apontar que nem todo crime é cometido por torcedor organizado e, indo além, nem todo torcedor organizado que comete crime é infiltrado.

Nesse âmbito, é importante trazer outros pontos pertinentes para explicação. Em primeiro lugar, não se pode esquecer que estamos falando de agrupamentos de jovens. Reflita comigo: em sua juventude você não foi inconsequente em dado momento?! Não cometeu ações, mesmo que mínimas, que hoje não comete mais?! Não fez coisas que hoje se arrepende ou julga que são erradas?! Pois é! Esse aspecto ontológico não pode ser aplicado apenas a você, pobre "cidadão de bem" que já roubou chocolate nas Lojas Americanas, mas a vários outros âmbitos da vida.

Ligado a isso, aponta Cajueiro (2004), estamos vivendo em uma sociedade cada vez atomizada. Assim, indivíduos buscam formas de ajuntamento diante de um mundo cada vez mais individual, sendo isso algo que “dê sentido à vida”, que os impulsionem, um objeto em comum. Atrelado a isso, diante da constante invisibilidade da periferia na sociedade, indivíduos, muitas vezes destituídos de um sistema educacional mais consistente, de oportunidades de emprego mais claras, e de estabilidade afetiva mais definida, buscam nesses grupos formas de visibilidade social, consciente ou não; até porque o status “torcedor organizado” aponta algum respeito social de pessoas que se sentem amedrontadas diante dessa generalização.

O que nos faz chegarmos a um último ponto, esse apontado por Peter Marsh em suas pesquisas acerca dos hooligans ingleses. Para Marsh, havia uma percepção extrapolada dos grupos hooligans por parte das autoridades policiais, dos políticos e da mídia. Isso causava o que o autor chamou de “ciclo de agressividade positiva”, que a seguinte ideia: o ser humano pode tender a acreditar e agir em suas performances através daquilo que correntemente é atribuído a ele. Dito de outra forma, o torcedor passa acreditar nessa percepção generalizada, esperando que policiais e outros hooligans também caminhem nessa mesma direção. Isso leva a um problema que, em cadeia, vai além do que de fato é.

Assim, um perigo que caímos é achar que os problemas de violência do futebol tem um alcance que não é verossímil. Nesse ínterim, corremos o risco de “cavarmos nossa própria cova” ao não perceber os perigos de levantarmos bandeiras que nos excluem, sobretudo o “torcedor comum” de classe baixa, que pensa ser um torcedor “pai de família”, quando, na verdade, não percebe que o genuíno torcedor “pai de família” é um projeto para os que se associam, que têm camisa (e outros artigos) original do clube, que têm condições de bancar ingressos caros e carros para voltar do campo em horários absurdos.

Terminei o texto passado provocando com uma fala que dizia que a solução para os problemas do futebol é a exclusão do povão. A fala é de um típico torcedor “pai de família”. Cabe recolocá-la aqui:

“Tem que cobrar ingresso caro, sim (...) o povão vai onde ele pode ir; agora ele só vai assistir o futebol porque o ingresso é pago pelo clube, senão ele não iria. Ele iria para a periferia jogar bola ou ele iria para a periferia assistir jogo de várzea ou jogar futebol de salão ou pescar ou fazer qualquer outra coisa; esses caras devem ser proibidos de entrar em campo, mas não proibidos por lei, por motivos econômicos” (palavras do Sr. Walter Silva, durante o programa SBT Repórter).

Perceba a lógica: torcida organizada não pode mais se mostrar como. É destinado a ela o anonimato na contemporaneidade. Assim, defendermos a exclusão desses grupos é não perceber que no fundo se está assinando um atestado de exclusão do estádio por não perceber que a solução tomada para essa pacificação é a valorização desse torcedor “consumidor”. Um exemplo disso foi um dia em que eu estava na fila para comprar um ingresso para um jogo na Arena. Na minha frente estava um torcedor associado, que queria comprar o melhor lugar para assistir o jogo. Ao saber que não havia mais ingressos para determinado setor, replicou o torcedor: -“e esse setor tem ar condicionado?!” Perceba! O que está por detrás da pacificação é um projeto com claros fundamentos de exclusão econômica.

Assim, reconhecendo como falho o projeto atual de higienização dos estádios (tema para os próximos textos desse blog), proponho aqui outros caminhos para lidar com um fato: a violência no futebol existe. Nesse caso, proponho dois caminhos. 

Antes de lançá-los, como forma de conclusão, reconheço que a ideia é fazer você refletir sobre uma outra possibilidade de pensarmos essa problemática, não uma verdade absoluta sobre a temática, mas uma alternativa de debate sobre uma temática que parece dada.

A primeira ideia é o reconhecimento, mesmo com suas falhas, da importância do pensamento do Murad acerca das torcidas organizadas. Em primeiro lugar, acredito que há uma extrapolação da percepção social acerca dos crimes ocorridos por torcedores organizados. Ratifico: os problemas decorrem de uma minoria categórica! Assim, afirma Murad, é necessário que pensemos a mudança a partir de um processo dividido em três estágios: o de curto prazo (com a punição aos que cometem delitos em campo), o de médio prazo (a prevenção, tentando antecipar possíveis casos de delitos) e o de longo prazo (processo que o autor chama de educação).

Ligado à proposta do autor supracitado, quero também lançar uma proposta, que é a ideia da responsabilização dos crimes cometidos. A ideia é ir além do foco exacerbado ao torcedor organizado, que promove uma percepção generalizada a qual em nada ajuda na solução da violência do futebol, mas promove uma resposta negativa desse torcedor. Assim, a noção aqui não é partir da ideia de que “todo torcedor organizado é bandido”, mas da proposta de pensar a todos como “torcedor”, em sua forma individual. Assim, as sanções a um torcedor seriam mediantes aos seus delitos, em individual, e não numa generalização, que se mostra frágil, mentirosa e prejudicial ao futebol brasileiro como um todo.


terça-feira, 3 de setembro de 2019

O “cidadão de bem” e a sua nomenclatura própria no futebol

Ficou popular na contemporaneidade a expressão “Cidadão de bem”. A expressão marca uma tentativa de diferenciação daqueles que supostamente vivem uma vida íntegra e correta, em detrimento daqueles que não atendem a esse raso estereótipo. É bem verdade que não discordo da possibilidade de existir “O CIDADÃO DE BEM” (se é que estou sendo claro ao falar disso), mas alguns pontos tornam-se importantes a serem revelados acerca desses indivíduos.
A primeira coisa que me chama atenção é que sempre achei estranha e perigosa toda noção de autopromoção. Mais curioso ainda é quando essa autopromoção é revestida de uma junção de arrogância e de moralismo. Pode perceber: a maior hipocrisia está embutida nos que se autoproclamam conscienciosos.
 Mais curioso ainda é observar que essas posturas prepotentes de colocar-se em um pedestal “acima da carniça” são díspares com determinadas práxis, ou seja, aponta o dedo para o outro, mas não consegue perceber-se. Dentre tantas coisas a serem ditas, já percebi nesses “cidadãos de bem” determinadas posturas que não condizem com sua autopromoção. Em uma gigantesca lista de possibilidades a serem faladas, listei algumas que vi naqueles que assim se rotulam:
-anda com mais pessoas que o normal no carro;
– transfere o cartão de passagem para outro (sabendo que é INTRANSFERÍVEL);
– fica com o troco quando a pessoa que está no caixa erra e dá a mais;
– anda sempre com número de um guarda de trânsito conhecido na agenda para ajudá-lo no flagra de possíveis ocasiões;
– anda com dinheiro para “dar toco” aos guardas de trânsito corruptos;
– fura fila nos terminais integrados;
– promove calote na luz ou na água;
– dirige embriagado;
– furta coisas pequenas em grandes estabelecimentos comerciais;
– tem pacto com milícia ou tem filho ligado a ela, etc.;
– se diz cristão, mas já teve uns três casamentos, filhos fora deles, traições, espaçamentos às suas companheiras, etc.;
Sabemos também, como afirma Bourdieu, que o futebol anda numa paradoxal ligação entre a inserção em um plano social mais amplo, ao mesmo tempo em que apresenta seus próprios caminhos, suas próprias particularidades, seus correlatos. Assim sendo, a nomenclatura “cidadão de bem” é substituída pelo seu correlato futebolístico: “o torcedor pai de família”.
Antes de tudo, é importante colocar que não estou dizendo que essa categoria de torcedores deveria ser expulsa do campo. O problema é que em alguns momentos caímos no erro de empreender a compreensão do campo como espaço voltado apenas para esse tipo de representação de torcedor (principalmente sem percebermos o que está por detrás disso). Nessa lógica, qualquer um que não se enquadre nesse rótulo é vagabundo (ou vagabundo em potencial). Assim, o argumento é generalista: deve ser expulso qualquer um que não seja “o torcedor pai de família”.
O que é mais curioso é que o “cidadão de bem” que, quando entra em campo, recebe a alcunha de “torcedor pai de família” é aquele que:
-assim como todos, declamam gritos homofóbicos e machistas e dizem que futebol é isso mesmo;
– pronunciam falas racistas e fascistas;
– compram ingressos destinados a estudantes sem serem;
– ou compram ingresso de sócios sem assim serem também;
– na época do “Todos com a nota” (programa do Governo do Estado que promovia ingressos gratuitos sendo trocados por cupons fiscais), pegava ingresso com nome de outra pessoa;
– ainda comercializava esses ingressos, mesmo sabendo que era proibida a venda;
Dentre outras coisas que poderiam ser faladas sobre esse torcedor, uma precisa ser revelada: a que ele também se envolve em casos de violência. Parece que também caímos na ideia de que a violência é exclusiva do “torcedor organizado”, que (diria a opinião pública) é bandido em sua generalidade e deve ser banido do futebol.
Entretanto, em minha pesquisa, tanto em conversas como em observação empírica, percebi uma quantidade considerável de torcedores “pai de família” que entravam em confusão no estádio. A explicação é simples. O futebol faz parte de uma noção humana de processo civilizador, que caminha na direção da sublimação ou do deslocamento das pulsões humanas para algo que seja moralmente aceito. Nesse ínterim, futebol se operaciona a partir de uma ideia de mimesis. A mimesis é a ideia de uma simulação lúdica e autorizada de combate, que envolve estratégia e certa agressividade ao praticá-la, ainda que essa agressividade seja delimitada por regras claras. Todavia, a partir do momento em que essa delimitação de regra se perde em dada circunstância, o autocontrole humano tende a dar espaço a uma vazão não autorizada de ação. Isso pode ocorrer com qualquer ser humano, em qualquer espaço.
Assim, chovem relatos de ditos torcedores comuns que se desentendem e brigam nas arquibancadas e acabam parando na delegacia do torcedor. Esses casos não têm notoriedade porque se passa pela ideia de que foi algo “no calor do momento”. Além disso, já vi vários relatos de ditos torcedores comuns que se juntaram a torcedores organizados em tumultos fora do estádio. Entretanto, continuamos a achar que a violência no futebol só é praticada pelos indivíduos que fazem parte de alguma agremiação organizada.
Toma-se como exemplo o jogo Sport x América-MG no dia 22/08/2018 pela série A do campeonato brasileiro. Na ocasião, o Sport vivia uma péssima fase, com um considerável jejum de vitórias. No meio da partida, houve um tumulto entre torcedores no setor das Cadeiras, que é o local onde assistem aos jogos os torcedores “pais de família”; uma briga categórica! Alguns pontos interessantes podem ser retirados dessa situação:
1- a polícia chega quase um minuto após o início do ocorrido;
2- os policiais chegam e alguns pedem calma aos tumultuadores;
3- no outro dia, figuras ligadas à mídia postam coisas como: “a ilha transpira nervosismo”, etc.
(1) talvez você possa pensar: -“mas que bom que a polícia chegou em um minuto para solucionar o problema!” Todavia, tu achas que a polícia levaria um minuto para chegar em um tumulto no setor da Geral?! Não! A polícia está em cima. Para ela, o problema só vem de lá; só vem do setor popular. (2) Dificilmente a abordagem policial pediria calma. Outras situações apontam que a ação seria banhada de spray de pimenta, bala de borracha, cassetete e algemas. (3) Também voltamos à influência das pessoas ligadas à comunicação social e a importâncias desses indivíduos na formação da opinião pública acerca das pessoas que vão ao campo na contemporaneidade. Muito provável esse tipo de fala não ocorreria se o problema fosse no setor popular do estádio. No fundo, polícia, diretoria e o jornalismo (de maneira geral) partem dessa distinção (na práxis e no discurso) entre “o torcedor pai de família” e os demais.
Ainda sobre o cidadão de bem, percebe-se duas características claras: a primeira é uma ideia de moral; a segunda é uma ideia econômica. Quem não se enquadra nisso, é um “idiota útil”. Nesse ponto de vista, é perceptível que o plano discursivo destes se dá a partir de uma superficialidade analítica. Assim, escutamos argumentos, como: -“eu sou branco e estou no colégio público, fulano é preto e está na mesma sala que eu: e tem racismo no Brasil, é?!”. Um dia desses, vi alguém postando em sua rede social que devemos trocar “um grevista por um desempregado”, mal sabendo ele que muitos dos direitos que ele mesmo usufrui vieram a partir de movimentos grevistas. Logicamente, que é difícil para ele entender. Não é ele quem trabalha cotidianamente debaixo de condições insalubres, ele manda naqueles que trabalham diariamente sob condições insalubres de trabalho.
Interligada ao argumento moralista supracitado, a ideia econômica parece que aponta para a participação da população economicamente ativa (PEA). Assim, estamos falando de dois tipos de indivíduos:
2.1 os que detêm uma posição de superioridade financeira diante da média da população
2.2 os que se encontram subjulgados sob um processo que os tornam alienados e conformados, defendendo bandeiras que o subjulgam o tempo todo e acreditando que isso está fazendo bem ao mesmo.
Engraçado é que os dois tipos de indivíduos, pertencentes a dois segmentos de classe diferentes, unem-se para pedir a mesma pauta: mais policiamento. Porém, há um perigo nisso (em específico para aqueles que fazem parte do ponto 2.2). É que parece claro que a ação policial tem classe e cor. Como afirma Norbert Elias, a polícia é um aparelho repressor em favor das classes mais favorecidas socialmente. Ou seja, a polícia sempre parte de uma lógica de ação exclusivista.
Assim, juntando os dois pontos, corremos o risco de aplicar essa mesma lógica ao futebol ao achar que o campo é o lugar apenas para “o torcedor pai de família”, acreditando, portanto, em falácias, sendo a maior destas a que “o cidadão de bem/torcedor pai de família” está saindo do estádio. Defender a ideia de que o “torcedor pai de família” não frequenta mais o estádio é, antes demais nada, acreditar uma compreensão equivocada, visto que o futebol caminha para uma espécie de higienização dos estádios (tema para um outro texto). Muito pelo contrário, não percebemos que essa é uma falsa visão de mundo que esconde o foco dos clubes em querer esse “consumidor” em detrimento ao “torcedor”.
Nesse sentido, o “torcedor pai de família” é uma representação do consumidor (ou defendem uma ideia sem de fato serem incluídos nela) e aqueles que não se enquadram nisso são colocados em generalidade como bodes expiatórios: são bandidos, devem ser excluídos, são marginais, vadios, etc.:
 “Tem que cobrar ingresso caro, sim (…) o povão vai onde ele pode ir; agora ele só vai assistir o futebol porque o ingresso é pago pelo clube, senão ele não iria. Ele iria para a periferia jogar bola ou ele iria para a periferia assistir jogo de várzea ou jogar futebol de salão ou pescar ou fazer qualquer outra coisa; esses caras devem ser proibidos de entrar em campo, mas não proibidos por lei, por motivos econômicos” (palavras do Sr. Walter Silva, durante o programa SBT Repórter).

Santa Cruz, Náutico e a (não) rivalidade em Pernambuco (?)

No fim de semana passado, falou-se muito do último clássico deste ano (Náutico x Santa Cruz), que ocorreu sábado 24/08/19 (17:00) no estádio dos Aflitos. O clássico valeu aos dois clubes, mas com pesos claramente diferentes: com 30 pontos, 5 a mais que o terceiro colocado, e faltando apenas essa rodada, o Náutico já havia garantido a classificação e o segundo lugar no grupo, tendo o privilégio de não só gozar de uma classificação prévia como também a certeza de que pode decidir o mata-mata da próxima fase em seus domínios.
Entretanto, mesmo com certa tranquilidade, o Náutico poderia almejar algo a mais nessa partida: em primeiro lugar, o time podia acabar essa fase como líder do grupo, podendo escolher um adversário (teoricamente) mais fraco. Olhando para a tabela essa lógica fazia sentido: 4º lugar do grupo B, era o pouco conhecido Ypiranga-RS, enquanto que o 3º era o Remo, clube com tradição e torcida em seu Estado (além de ter uma torcida organizada de aliança rival à torcida organizada do Náutico, promovendo, assim, um jogo de mais apelo e participação do seu torcedor). Ademais, vencer o Santa Cruz, e com o tropeço (empate ou derrota) do então líder Sampaio Corrêa, daria ao Náutico não só a primeira colocação do grupo como também o primeiro lugar geral, podendo sempre decidir em casa até uma possível final de Série C;além de ter o claro privilégio de eliminar seu rival.
Para o Santa, o cálculo era mais objetivo: estando fora do G-4, com claros déficits nos critérios de desempate, e não dependendo de suas forças para se classificar, o tricolor precisava vencer o Náutico e torcer contra os seus adversários para obter classificação. Uma derrota, ou uma desclassificação ainda nessa fase, acarretaria uma pausa de praticamente 5 meses nas atividades oficiais no clube. Isso mesmo! Quase meio ano de paralisação para um clube com tamanha tradição como o Santa Cruz. Além disso, e pior, saber que o time iria amargar mais um ano de Série C. Uma vitória, porém, além de confirmar a boa fase do time e alavancar a moral do grupo, poderia colocar a cobra coral em 3º lugar, tendo também a oportunidade de enfrentar um time, teoricamente, mais fraco no mata-mata.
Diante disso, a partida apontava para uma quebra de um suposto companheirismo entre os dois clubes. Durante a semana que passou, jornalistas em seus poadcasts (ou nos seus blogs e perfis pessoais em redes sociais) ou em programas televisivos tocaram nesse assunto. Toma-se como exemplo a postagem do João de Andrade Neto, jornalista esportivo do Diário de Pernambuco e integrante do @Podcast45, que em sua rede social assim escreveu: “Bora colocar o dedo na ferida? Bora. Se o jogo fosse para manter o Sport na Serie C com o time já classificado (como está agora) possivelmente a torcida do Náutico não estaria reclamando do preço dos ingressos. E esses ingressos iriam se esgotar em dois dias”. Ainda relacionado ao contexto, o atual presidente da FPF, Evandro Carvalho, lançou a seguinte opinião: “O defeito do Sport foi ter ficado grande com o Santa Cruz e Náutico pequenos”. Essa fala é tão problemática que abre margem para aquela velha máxima que alguém diria: “existem duas torcidas no Estado: a do Sport e a contra o Sport!”. Mas, será mesmo?!
Nesse sentido, parece que o presidente da FPF e figuras públicas ligadas a esse esporte, de maneira geral, não perceberam, parafraseando William Shakespeare, que “há mais coisas entre duas barras, Horácio, do que sonha a tua filosofia”. Assim, torna-se importante trazer à baila alguns pontos, numa tentativa de trazer outra compreensão acerca do assunto.
Um primeiro ponto a ser falado é que caímos no erro de partir de padrões “eternizantes”, no sentido de apreender o mundo a partir da falsa e superficial lógica do “isso sempre foi assim!” De fato, tendemos a subsumir a contemporaneidade ao “eterno”. Todavia, isso não é verdade! Santa e Náutico sempre foram rivais. Entende-se que a rivalidade caiu em aceitar crenças tão heréticas que parecem que o mundo não pode proceder em outra realidade. Desta forma, para se entender a suposta (não) rivalidade entre os dois clubes, é indispensável refletirmos sobre seu outro rival: o Sport Club do Recife.
Como havia falado, os clubes são rivais, com grandes clássicos em sua história; clássicos tão emocionantes que o embate recebeu o nome “Clássico das emoções!”. Todavia, movimentos recentes apontam para uma mudança de perspectiva dentro do Estado, sobretudo relacionado ao crescimento do Sport Club do Recife nas últimas décadas, fazendo com que, aparentemente, os times voltem-se ao Rubro-negro da praça da bandeira e coloquem em escanteio a outra rivalidade em Pernambuco. Entretanto, é necessário pontuar de onde veio o crescimento rubro-negro. Diferentemente do que se pensa, mais do que fazer história; a história fez o Sport.
Em 1997, o Sport entrou no seleto Clube dos 13. Sem entrar muito em discussão sobre a forma que o clube dos 13 influenciava o futebol brasileiro, torna-se importante pontuar que os times que faziam parte dele eram categoricamente beneficiados em cotas de TV, em visibilidade, entre outros pontos que podem ser trazidos à baila. A partir daí uma disparidade financeira tornou-se clara entre os times da capital pernambucana: o Sport passou a ter mais visibilidade e recursos para montar times melhores. Daí você pode perguntar como isso se reverbera na prática. Permita-me trazer alguns dados.
Em 1996, a distribuição de títulos do campeonato pernambucano era assim:
Náutico: 18
Santa Cruz: 23
Sport: 29
Número relativamente próximo, em meio a um campeonato que completava sua 82ª edição em 1996. Porém, a distribuição hoje está dividida assim:
Náutico: 22
Santa Cruz: 29
Sport: 42
Ou seja, em 22 anos, após a entrada no clube dos 13:
Outros times: 0
Náutico: 4 títulos
Santa Cruz: 6 títulos
Sport: 13 títulos estaduais
Ou seja, o Sport ganhou, após sua entrada nesse seleto clube, mais do que todos os outros clubes juntos no Estado. Coincidência?! É bem verdade, Náutico e Santa tentaram entrar nesse seleto clube, tendo o próprio Sport votado contra a entrada dessas instituições.
Títulos, cotas de TV, dinheiro… tudo isso trouxe visibilidade ao Sport, aumento de sócios, etc. Aqui, precisa-se desmistificar a ideia de que “filho de peixe, peixinho é!” Não necessariamente! O Sport, em poucas décadas (diferentemente de Náutico, que ficou conhecido historicamente por ser “o aristocrata” e o Santa por ser conhecido como “o clube do povo”) angariou torcedores de diversos segmentos de classe, tornando-se a maior torcida de Pernambuco. Diante de gerações cada vez menos vinculadas aos antigos padrões de família, o filho tende a não mais escolher o time “porque meu pai também torce para ele”, mas a preferir o time que “está na mídia”; que vence! Além disso, é perceptível que o Sport compila cada vez mais torcedores nominais (aqueles que dizem torcer para o time, mas não sabem nem a escalação, mas, indo e voltando, compram algum artigo para dizer que torce para o clube, vão a um jogo para postar foto, etc.) ao seu favor.
É verdade que o clube dos 13 acabou, mas o Sport (e quase todos os clubes que faziam parte dele) continua a se beneficiar nos contratos televisivos. O Sport tem uma cota categoricamente maior aos outros clubes em questão, muito em função de sua ligação histórica ao Clube dos 13.
Além disso, o próprio presidente da FPF, que vem a público induzir que o Sport cresceu de forma natural, tornando-se grande por si só, foi o mesmo que foi à CBF negociar o desmantelo financeiro que o rubro-negro da ilha sofreu nos últimos anos. Não é comum isso (para ser eufemista), quando relacionado aos outros dois clubes da capital.
Interessante também pensar que a própria mídia (e as suas figuras públicas) vive seja em pequenas matérias descontraídas com torcedor seja nos pequenos textos no Twitter, apontando essa não rivalidade entre os clubes, mas não se percebe como agente de diminuição desse embate histórico.
Além das já mencionadas disparidades de cotas, a própria mídia aponta para uma aproximação entre o time tricolor e o alvirrubro. Lembra-se da batalha dos Aflitos de 2005?! Pois é! O que a mídia, de forma geral, não parece lembrar é que partiu dela o movimento “triconáutico”, que apontava para uma ligação e auxílio mútuo para que os dois times alcançassem o acesso à Série A do campeonato brasileiro.
Ainda que com boas intenções, é hipócrita essa mesma mídia criticar uma suposta aproximação dois clubes, ou não percebendo sua influência nisso. Para você ter uma noção:
  • Em 2006, Náutico e Sport subiram juntos para a Série A;
  • Em 2007, Náutico e Sport tentaram permanecer na série A;
  • Em 2009, Sport e Náutico tentaram permanecer na Série A;
  • Em 2011, Náutico e Sport subiram novamente juntos para a Série A;
  • Em 2012, Náutico e Sport tentaram permanecer na Série A (apenas o Náutico conseguiu);
  • Em 2016, Sport e Santa Cruz tentaram permanecer na Série A (apenas o Sport conseguiu);
Uma pergunta: em algum desses momentos você viu a mídia criar o movimento “tricoSport”, “Spornáutico”, “timbasport”, ou algo do tipo?! Não! A mídia, de maneira geral, consciente ou não, elenca o Sport a ser o maior rival do Estado; a ser (naturalmente) o “papai da cidade”.
Por fim, os argumentos percebidos para ratificar essa ausência de rivalidade se fazem valer de dois pressupostos: (1) o jogo do milhão pela copa do Brasil do corrente ano e (2) o último clássico do ano que ocorreu no último fim de semana. Entretanto (1),  é uma falácia achar que o acordo da partida do milhão se deu a partir do desejo de ajudar o outro! Não! Isso é uma blasfêmia! Ninguém quis ajudar o rival, todo mundo se fez valer de SE AJUDAR! Os times estão atolados em dívida, na série C, com calendário esportivo bem menor… Os times não pensaram no outro. O argumento é claro: “prefiro ter a certeza de ganhar uma parte do que a incerteza do todo, podendo perder tudo”.
Bem, você pode não concordar com isso, mas reconheça que é má fé dizer que pensaram no outro, ou dizer que “se fosse o Sport…”. Ao Sport “sobrou” o conchavo do clube dos 13, ou não lembra que em 2005 a Portuguesa ajudou o rubro-negro a não cair, jogando a vida contra o Vitória no Barradão, mesmo já classificada, para favorecer o time o Sport, a quem tinha boa relação?!
E (2) acho complexo e confuso jornalistas dizerem que “os aflitos lotaria se fosse o Sport”. Em primeiro lugar, o ingresso foi posto de forma muito cara a um time que já estaria classificado, que pouparia jogadores, que já estava garantido, no mínimo, em 2º lugar. Outra coisa: a final do pernambucano desse ano ocorreu nos Aflitos, depois de anos sem receber uma final no histórico estádio, contra um rival que há muitos anos não vence uma decisão. Esgotou os ingressos?! Não! Pelo mesmo motivo: o ingresso caro.
Reconheço que Sport teve seus méritos também para alavancar-se em relação aos rivais, mas não se pode dizer, ao olhar para o Leão da praça da bandeira, que Santa Cruz e Náutico não são rivais. Perceba (posso estar errado nisso), Barcelona, Espanyol e Girona jogaram juntos a primeira divisão do campeonato espanhol e são da mesma região (Catalunha): vocês acham que é mais gostoso, para um torcedor do Espanyol e Girona, vencer um ao outro ou o time que com mais visibilidade?! Nesse sentido, é normal (até diante da reconhecida arrogância rubro-negra em decorrência do aumento de títulos nas últimas décadas) ter “um gosto a mais” a vitória contra o Sport; todavia, repito: não podemos perceber Náutico e Santa como não rivais.
Assim, proponho refletirmos sobre essa suposta ideia de “eterno” que designamos a realidade contemporânea desse embate histórico. Proponho também pensarmos a importância da mídia na construção e desconstrução dentro do futebol. Por fim, na práxis, é preciso reconhecer Náutico x Santa Cruz como clássico, quebrando a falácia do “eterno” que assolou as últimas décadas desse embate.

Barra/a/Barra

O intuito desse blog é compartilhar alguns assuntos voltados aos esportes, em especial o futebol. A ideia é trazer (ou pelo menos tentar) uma outra perspectiva sobre alguns pontos pontos que 1- ou não percebemos que têm raízes mais profundas do que se imagina, 2- nunca refletimos sobre eles de tão banais que parecem ser.
Nesse ínterim, cabe falar que semanalmente conteúdos serão lançados não para trazer uma verdade inequívoca e fechada sobre um assunto, mas apresentar um caminho de construções dialógicas, a fim de debatermos mais sobre um dos maiores expoentes da cultura brasileira: o futebol.